
A distância continental que separa a pequena cidade de Alegrete, no Pampa Gaúcho, de Brest, na França, só não é maior que a determinação de uma jovem que, aos 6 anos, já afirmava convicta à mãe: “Eu vou fazer faculdade!”. Contrariando o estigma imposto por sua condição social – que a colocava fora do quadro universitário do Brasil -, e superando inúmeras adversidades devido à falta de recursos financeiros, Isadora Ferrão conquistou, com apenas 27 anos, muito mais que seu sonho inicial.
Hoje ela é uma pesquisadora que acumula diversas conquistas. A mais recente delas foi a tese defendida em dezembro no Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação (ICMC) da USP, em São Carlos. “Há três anos, eu sequer sabia falar inglês, e hoje sou doutora por um dos institutos mais prestigiados do mundo. Essa trajetória não apenas me trouxe uma felicidade indescritível, mas também reafirmou que sou realmente capaz de superar qualquer desafio”, reflete Isadora.
Nascida e criada em Alegrete (RS), a filha caçula de dona Marilene Ferrão quase não teve tempo de saborear essa conquista. Isadora se prepara para embarcar, nos próximos dias, em uma nova jornada de aprendizados: um pós-doutorado na Universidade da Bretanha Ocidental, em Brest, onde deve permanecer pelos próximos dois anos. “Vou continuar trabalhando com segurança tecnológica. Quero aproveitar as oportunidades na Europa e, quem sabe no futuro, voltar ao Brasil para uma vaga de professora universitária”, planeja.
Conquistas
O título de doutora coroou um ano de outras duas importantes conquistas de Isadora. Um mês antes da defesa, ela representou o Brasil na Rússia, durante o BRICS Young Innovator Prize 2024. Selecionada por uma chamada conduzida pela Feira Brasileira de Ciências e Engenharia (Febrace) e pela Academia Brasileira de Ciências (ABC), Isadora competiu na categoria Palladium in Future Technologies com dezenas de jovens talentos dos dez países do agrupamento BRICS: Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul, Etiópia, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Irã e Egito. “Foi uma oportunidade incrível! ei cerca de uma semana e meia com alguns dos melhores jovens cientistas do mundo, de diferentes áreas. Isso abriu muitas portas para possíveis parcerias acadêmicas”, ressalta a pesquisadora.
Antes disso, em fevereiro de 2024, Isadora foi selecionada para participar do Condor Camp, uma imersão anual que foi realizada no México, reunindo jovens universitários de alto potencial. O evento proporciona um ambiente de discussão sobre os problemas mais urgentes do mundo e os desafios futuros da humanidade, além de promover o desenvolvimento de habilidades essenciais para enfrentá-los e solucioná-los. “Foram dias intensos de aprendizagem, fraternidade, troca de ideias, gentilezas e muita técnica. Foi intelectualmente cansativo e construtivo”, conta.
Esforço e talento
Muito antes de chegar à USP São Carlos, onde também fez o mestrado, Isadora já demonstrava talento para matemática. Nos exercícios incompletos dos cadernos dos irmãos, 4 e 7 anos mais velhos, ela se debruçava para encontrar, através da lógica, aquela que seria a solução. Estudando em uma escola pública em um contexto de periferia, a pesquisadora destaca que teve excelentes professores, embora informações sobre bolsas, Olimpíadas e outras oportunidades raramente chegassem à comunidade, limitando o o a esses recursos.
Entretanto, quis o destino que, dois anos depois de dizer à mãe que faria faculdade e ouvir que a família não teria condições de pagar uma instituição particular, uma universidade pública começou a ser construída exatamente em frente à escola Lauro Dornelles, onde ela fez o ensino fundamental. “Havia um terreno em frente à escola e foi lá que construíram a Unipampa, onde eu acabei cursando Ciência da Computação”, relembra.
Grata pela oportunidade, Isadora quis abraçar todas as oportunidades e participou de projetos de ensino/pesquisa e extensão. Ela também acabou criando, junto com uma professora, um grupo chamado Gurias na Computação, para apoiar meninas no curso. “Eu pensava: “A população está pagando minha faculdade, então preciso aproveitar tudo e retribuir”, recorda.
Apesar de ter feito iniciação científica em várias áreas, ela acabou se encontrando na área de segurança em TI, trabalhando por dois anos com o professor Diego Kreutz. “Hoje, ele lidera um laboratório com vários alunos e o a muitas bolsas. Mas, na época, eu fui a primeira a incomodá-lo com tanta insistência. Foi nessa área que descobri minha paixão, e essa experiência me levou a decidir pelo mestrado”, afirma.
Foi nessa época que um encontro fortuito fez o ICMC despertar como objetivo concreto: no Congresso da Sociedade Brasileira da Computação (CSBC), onde Isadora foi apresentar um artigo, ela ficou sabendo que a professora Kalinka Catelo Branco, do Instituto, estava no evento. “Assim que soube, deixei a sala em que estava e corri para encontrar a dela. Assim que a vi, fui direta: ‘Oi, professora, tudo bem? Eu sou a Isadora. Posso fazer mestrado com você" crossorigin="anonymous">